quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Passando na cara 2...

Ótima expressão, por sinal.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Passando na cara...

Terminei "Putas assassinas", do Roberto Bolaño. O cara escrevia terrivelmente bem mas se me pedissem para definir, diria que é uma literatura de macho. Acho que pela quantidade de vezes que li "passava-lhe na cara".

Margaridas manchadas

Largou a navalha, que caiu com um estrépito seco sobre o azulejo, e sentou-se na beirada da banheira de louça. O sangue imediatamente brotou das fendas abertas em seus pulsos e começou a pingar sobre as pequeninas margaridas espalhadas pela flanela da camisola. Aquela visão causou-lhe uma vertigem inesperada, seguida de violenta náusea, então girou as pernas e aninhou-se em posição fetal na reconfortante brancura da banheira. Fechou os olhos, e apesar da dor latejante um cálido torpor apossou-se de seu corpo. Sob as pálpebras cerradas, um pequeno ponto de luz foi lentamente transformando-se em uma luminosidade quase insuportável, e achou-se de repente em uma praia ensolarada. Sentia a areia fofa e úmida sob o corpo, pelas frestas dos olhos entrevia um céu esplendidamente azul, podia cheirar e ouvir o mar, aquele vaivém deliciosamente incessante que sempre tem gosto de eternidade. Então, uma voz infantil - vem, mamãe, vem ver o meu castelo! - um garotinho vinha correndo em sua direção, com um baldinho plástico em uma mão e uma pazinha na outra. Ela ergueu-se e foi ao seu encontro, abraçando-o e girando seu corpinho moreno e molhado diversas vezes pelo ar, e aquela sensação aniquilantemente arrebatadora que sempre a surpreendia invadiu-a novamente, aquela sensação inexprimível que a fazia crer na felicidade, em Deus, em tudo - vamos, meu amor, vamos ver o seu castelo, aposto que é o castelo mais magnífico que alguém já fez! - devolveu-o suavemente à areia e lá se foram, de mãos dadas. De novo a vertigem incontrolável, ela sentiu-se rodopiar pelo espaço e cair através do vazio, já não havia a luz do sol. Quando conseguiu fixar a mente, achou-se em um pátio, e reconheceu o pátio dos fundos da velha casa de pedra de seus pais. Da parreira pendiam dezenas de balões coloridos, podia perceber vagamente a algazarra de crianças e o ruído de pessoas à sua volta. No centro do pátio, uma grande mesa retangular coberta por uma toalha verde e sobre ela toda aquela variedade incrível de docinhos, salgadinhos e refrigerantes habitués das festas infantis, circundando um imenso bolo redondo decorado como uma bola de futebol. Bem atrás dele, um garoto moreno estendia-lhe os braços - vem, mamãe, me ajuda a soprar a vela, quero fazer meu pedido! - ela apressadamente deu a volta e abraçou-o por trás, e juntos, cabeças lado a lado, sopraram a chama no topo do nove azul - parabéns, meu amor! - sussurrou-lhe ao ouvido, e a já conhecida sensação invadiu-a, passeava-lhe flamejante pelo peito. Suas palavras, porém, foram sufocadas pelos urras das crianças, que se tornavam mais intensos, quase ensurdecedores, e em meio a outra onda de atroz vertigem viu-se novamente teletransportada. O som trovejante, percebeu então, vinha das turbinas de um avião que acabara de pousar a alguns metros dela. Estava parada diante das portas envidraçadas que davam para o salão de desembarque de um aeroporto, rodeada de pessoas que a comprimiam levemente contra o vidro e traziam no rosto a mesma expressão de ansiosa expectativa. Logo uma fila indiana de passageiros surgiu no longo corredor que desembocava no salão, e foi imediatamente cercada por uma profusão de abraços e beijos saudosos, de reencontros e conversas calorosas. Em meio ao tumulto, um rapaz alto e moreno, de moletom e mochila nas costas, parou à sua frente - mãe, eu avisei que não precisava vir! - o enorme sorriso aberto no entanto dizia-lhe o contrário, e na ponta dos pés enlaçou-o vigorosamente pelo pescoço - que saudade, meu querido, que saudade! - e a doçura do velho frêmito percorri-a inteira, fazendo-a desejar ficar para sempre ali, na ponta dos pés. Uma campainha irritantemente aguda e insistente, porém, pareceu despertá-la de um sono profundo e viu-se , ainda ébria, debater-se entre as cobertas e derrubar o pequeno abajur de leitura. Quando finalmente conseguiu levar o fone ao ouvido, uma voz masculina desconhecida, um pouco seca e formal, falava com certa estranheza mas as palavras embaralhavam-se e perdiam-se na escuridão do quarto porquê apenas duas foram apreendidas e ecoavam infindáveis na sua mente: acidente...carro... Seu significado parecia-lhe desconexo, incompreensível como se fosse latim ou grego ou qualquer outra língua muito desconhecida, e ela pensou que talvez estivesse sonhando. Sim, era um pesadelo, só podia ser mas então viu-se novamente estendo-lhe a mão com as chaves - tome, filho, boa festa! - viu-se beijando-o nas faces e olhando, parada à porta, sua figura alta e morena descendo as escadas e seu coração teve a certeza de que não, não era um pesadelo e naquele preciso instante ela o sentiu parar de bater. Com as mãos viscosas sobre o ventre, ainda pôde pensar - espere, meu filho, vou com você, espere! - e a velha sensação, a inefável felicidade, inundou-a, uma vez mais...
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