quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Sobre dedos

Do torpor foi a dor que a tirou. Dor aguda e ardida de algo assim como um rasgo, talvez não exatamente um rasgo, mais pruma fincada, ou não exatamente, uma estocada, talvez. O que fosse, a aspereza pela mistura da pele com a areia piorou e a despertou do torpor. Era o dedo, percebeu ainda meio ao longe, um dos indicadores, nunca soube qual, mas era o dedo com certeza e abriu os olhos com o susto. Que espetáculo que é mesmo um céu noturno longe da cidade, imenso pedaço de veludo negro tão salpicado de brilhantes que era impossível contar, sempre tentava quando criança, adorava as viagens de ônibus e de carro onde podia colar a cabeça no vidro e ficar contando, mas depois de um tempo cansava e contava só as estrelas cadentes, sempre eram muitas, na cidade quase nunca via, na cidade o céu não é tão incrível e a gente também esquece de olhar. O dedo voltou a repetir o percurso e dessa vez soltou um gemido. Tentou se mover, mas sob o peso só conseguiu retesar o corpo e aumentar miseravelmente o ardor . Piscou várias vezes, os pontinhos cintilantes tavam dançando, centenas, milhares, nunca conseguiu contar, nunca conseguiria, todos juntos, o céu inteiro rodopiando num balé vertiginoso, insuportável, fechou os olhos.

- Eu sabia, eu sabia! Tu é virgem!
As palavras vieram de algum outro lugar que não o mesmo de onde antes tava sentindo a lufada quente cheirando a cerveja, entre o pescoço e a orelha, o peso tinha saído de cima dela tão rápido que elas vieram desse outro lugar antes mesmo que conseguisse abrir os olhos de novo.

- Eu sabia, eu disse pra eles que tu era muito novinha, que merda, acho que tu nem tem 15 anos nada, eu sou um otário mesmo.

Na última palavra já tinha conseguindo erguer o tronco, apoiada nas mãos. Ficou olhando o vulto se distanciar com decidida pressa na escuridão deserta da praia, até ficar muito pequenininho e sumir . Uma brisa balançava seu cabelo. Das suas costas vinham ruídos longínquos de gente e de música. Axé. Da sua frente o som fruído, suave, intermitente e interminável do mar, mas não dava pra enxergar ele, só escutar, estranho saber que diante da gente tá toda aquela vastidão assombrosa e sem fim de água e não poder ver, só ouvir. Passou a mão pelas coxas descobertas, a saia toda amarfanhada na altura da barriga. Ajeitou-a e dobrou os joelhos, tentando ficar em pé, mas o resultado do esforço foi uma onda violenta de náusea e um jorro nojento de vômito na areia, só líquido, limpando a boca com a blusa lembrou que não tinha comido nada desde a tarde e dos conselhos das amigas, a essa altura vãos, de nunca beber de estômago vazio. O chão, a areia, o céu, as estrelas, os ruídos de gente, de axé, do mar, o universo inteiro girava então deitou outra vez. Começou a sentir também uma dor horrenda na garganta, parecia que do nada, de repente, uma bola de tênis tinha ido se alojar ali, bem na sua garganta. E um aperto no peito. A dor crescendo, inacreditável, parecia que a bola ia explodir a qualquer momento. O que é que tinha feito de errado? Ou o que é que não tinha feito certo? Abriu os olhos, as centenas, milhares de pontos brilhantes continuavam lá mas agora trêmulos, tremiam além de dançar e percebeu que seu rosto tava todo molhado. A dor na garganta foi amansando, devagarinho, a bola de tênis diminuindo até virar uma bala entalada. Vontade ensandecida de levantar e gritar a plenos pulmões, com todas as forças pra praia inteira que sim, que tinha 15 anos sim, feitos há um mês, que tava comprovado lá na identidade, que bosta, mas em vez disso ficou ali deitada na areia, quieta, olhando pro céu. Tava tão escuro, nunca tinha lhe parecido tão profundamente escuro e as estrelas piscavam como nunca tinha visto, com uma luz extraordinária, centenas, milhares. Não, na cidade não é tão incrível. Na cidade a gente esquece de olhar. Uma, duas, três, quatro, cinco...
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