terça-feira, 11 de maio de 2010

Carta de um hipocondríaco


Desconheço, a priori e com exatidão, quando foi que começou. Talvez tenha sido ainda no ventre de minha mãe, não constatou a medicina moderna, através de avançados métodos de investigação, a capacidade de percepção e assimilação dos fetos às influências da vida extra-uterina e sua precoce manifestação de características da personalidade? Ou talvez tenha sido um pouco mais tarde, nos primeiros anos da infância, quando somos ainda tão vulneráveis e os fatos mais ordinários da vida , como o desabrochar de uma flor ou um pinto saindo da casca, são capazes de causar-nos a mais vívida das impressões. O certo é que por volta dos seis anos de idade uma significativa quantidade de sintomas já paulatinamente se apresentava, dando mostras do que viria a tornar-se minha vida adulta.
Sou filho único, tendo meu pai abandonado o lar quando eu contava apenas dois anos de idade para nunca mais esboçar o menor sinal de vida. Após esse ocorrido, contou-me minha mãe que comecei a temer terrivelmente o escuro, só conseguindo dormir se ela deixasse ininterruptamente aceso o pequeno abajur amarelo que havia em meu quarto mas minhas recordações a respeito são vagas e difusas e creio que somente muito mais tarde pude compreendê-lo. Foi ela, minha mãe, quem criou-me e educou-me, com o econômico auxílio da própria mãe e de uma irmã, que viviam na casa em frente a nossa e observaram-me e alimentaram-me até eu ter idade suficiente para ingressar no jardim de infância da escola na qual minha mãe lecionava.
Fui uma criança incomum. Excessivamente tímido, ora era presa de uma ansiedade extrema, ora dominado por uma profunda letargia. O futebol causava-me pânico, na verdade considerava de uma brutalidade atroz qualquer esporte ou brincadeira mais agitada, pelas infinitas possibilidades que estes ofereciam às crianças de provocar-lhes ferimentos. Sempre evitei instintivamente qualquer prática que pudesse comprometer minha integridade física. Por ter uma mãe professora, aos cinco anos já estava alfabetizado e descobri na leitura um refúgio para as vicissitudes do que a mim, me parecia o misterioso e perverso universo infantil. Este refúgio confortador tem desde então me acompanhado, acolhendo-me sempre em seus bosques frondosos e fazendo-me trilhar seus estranhos e irresistíveis caminhos de veredas que frequentemente se bifurcam, desembocando em labirintos mágicos onde a aridez cinzenta da realidade tem passagem permanentemente barrada.
Mas não se pode esconder para sempre, e foi aos oito anos de idade que deu-se nosso primeiro e inesquecível encontro. Ela, a infame, a maldita, a indesejada das gentes segundo o poeta levara nossa vizinha do lado vitimada por um galopante tumor no cérebro. Recordo-me vagamente do frenesi na rua, das mulheres sussurrando aos prantos, de minha mãe de preto, era uma criatura conservadora e antiquada, pobre mamãe, vestindo-me para irmos ao velório. E quando chegamos à capela, antes mesmo de cruzar a porta, eu soube pelo cheiro das velas queimando, pelos murmúrios lamurientos, pela solenidade que empestava o ar e fazia-o pesado como se à beira de uma estrondosa tempestade de verão, que minha vida nunca mais seria a mesma. Bati pé e não obedeci às recomendações de minha mãe, para que ficasse brincando nas cercanias. Agarrado a sua saia, com a cara enfiada entre as dobras, segui-a lentamente até o pequeno amontoado de gente de onde o choro vinha mais alto e angustiado, e enquanto ela oferecia condolências consegui meter-me por entre um mar de pernas e debruçar-me sobre aquela caixa de madeira infinitamente esquisita. A cara branca e balofa da vizinha, os olhos cerrados, os lábios arroxeados, os tufos de algodão nas narinas, a imobilidade pétrea que não era a do sono, definitivamente a morte não se parecia com o sono, e fiquei ali, apatetado, com as pequenas mãos crispadas na borda do caixão, olhando fixamente a cara pavorosamente branca e balofa da vizinha, por um longo tempo, até que minha mãe me puxasse pelo braço para irmos embora. Não, a morte não se parecia com o sono. A morte se parecia com uma pedra.
No dia seguinte, e nos subsequentes, fui acometido por atrozes dores de cabeça que me faziam chorar. Minha mãe dava-me aspirinas, chazinhos e mandava-me para a cama, era dessas mulheres pragmáticas que acreditam fervorosamente nessa tríade sagrada mas fiquei mal durante uma semana, uma angústia inexprimível oprimindo-me o peito e a cabeça quase a explodir. Chorava e repetia sem parar que estava morrendo. No sexto dia ela levou-me ao médico.
Pela primeira vez pisei em um consultório. Sempre fora excepcionalmente saudável e minha mãe também não era muito crédula sobre a medicina moderna. Aquele ambiente imaculado, de uma tranquilidade de oásis, por onde estranhos odores circulavam imediatamente me fascinou. O imponente senhor grisalho de avental branco que me examinou e fez-me uma porção de perguntas pareceu-me qualquer coisa muito próxima a um padre e deixei o local pisando em nuvens, como se finalmente houvesse conhecido os recônditos do sagrado. À soleira da porta de entrada cheguei a, sem que mamãe visse, ensaiar um sinal da cruz. As dores e a angústia haviam desaparecido milagrosamente e em meu íntimo já decidira, quando crescesse seria imponente e grisalho e usaria um avental branco e faria as pessoas se sentirem tão esfuziantemente bem como eu me sentia e continuei a almejá-lo mesmo depois da carraspana que me deu mamãe por tê-la feito desperdiçar a feira da semana`a toa já que o doutor reiterara minha saúde de ferro.
Cheguei, assim, à puberdade. Se fora uma criança incomum, taciturno e excêntrico eram alguns dos adjetivos que poderiam descrever o adolescente que me tornara. Mamãe acabou acostumando-se a minhas manias de doença, meus achaques de morte iminente e meus interesses um tanto mórbidos, e há muito já desistira de testar comigo os poderes da tríade. Também nenhuma outra vez consegui que gastasse suas economias levando-me ao “santuário” mas nem por isso abdicara do objetivo de tornar-me médico. Devorava toda e qualquer publicação onde encontrasse a mínima menção sobre doenças e anatomia, questionava obsessivamente minha avó sobre os males da velhice, li e reli incontáveis vezes Frankenstein (o gosto por esse prazer solitário só fizera crescer e passava longas horas trancado em meu quarto a desfrutá-lo, descobrira Poe e os simbolistas franceses). Acreditava piamente que somente a dignidade de uma vida dedicada à luta contra os malefícios físicos que há milênios assolavam a humanidade poderia espantar as nuvens sombrias e fatídicas que há também milênios, ou ao menos assim me parecia, pairavam sobre mim. Como já era de se esperar, não tive muitas namoradas, ao caráter excêntrico somava-se a irredutível timidez que nunca me abandonara. Após algumas poucas tentativas que se mostraram frustradas antes mesmo de poderem ser consideradas tentativas, resolvi concentrar minhas energias na tarefa hercúlea de realizar meu sonho.
Consegui, por mérito, ingressar na faculdade de medicina, para grande orgulho de mamãe, que mesmo sem dar-lhe ainda muito crédito corava-se e estufava-se de prazer antevendo-me doutor. As artimanhas do destino, porém, sempre dão o ar da sua graça, mais ordinariamente quando não esperadas ou desejadas, e vi meu sonho esvanecer-se como fumaça ao primeiro esguicho de sangue no avental pois assim que conseguiram reanimar-me tive a certeza de que o mesmo não resistiria à dissecação de cadáveres. Desde então, as nuvens não só não se dissipariam como se tornariam, a cada amaldiçoado dia de cumprimento da minha sentença a uma existência insípida de funcionário público, mais densas e ameaçadoras.
Mergulhei na neurastenia como um bêbado na garrafa de uísque. Esquistossomose, pleurisia, elefantíase, hanseníase, meningite, botulismo, fibrose, histoplasmose, tétano, tuberculose, peste, poliomelite, rubéola, oncocercose, raiva, difteria, hepatite, mononucleose, tracoma, apendicite, não havia enfermidade, viral, bacteriana ou congênita que nunca houvesse em mim se manifestado. Como um viciado que precisa de doses cada vez maiores para sentir o mesmo efeito, só me sentia bem ao descobrir novas doenças e assimilar seus sintomas cada vez mais estapafúrdios, e preenchia com meu outro único vício as constantes licenças médicas que me ausentavam da repartição. Por ocasião de uma delas, em que distraía-me de uma suposta crise alérgica com as desventuras românticas do jovem Gilliat , ocorreu-me que já encontrava-me em uma altura da vida na qual talvez fosse chegada a hora de uma nova tentativa, e ocorreu-me ainda que nessa nova tentativa eu poderia perfeitamente unir o útil ao agradável. Já que o destino interrompera impiedosamente meu sonho, por que não poderia eu, então, casar-me com alguém que o houvesse realizado por mim? Alguém que conhecesse a fundo todos os males e enfermidades, que dedicasse sua vida a travar as terríveis batalhas contra a morte que a mim haviam sido negadas? Alguém que passasse seus dias no oásis imaculado e que com certeza me assistiria, no seu avental branco, e me faria sentir esfuziantemente bem até o fim de meus dias? Decidi que não havia a menor necessidade de que fosse imponente ou grave, tampouco grisalha...
Algumas semanas depois, durante as quais todas as tardes haviam sido gastas em incontáveis cafés acompanhados de muita leitura na lancheria do maior hospital da cidade e em desconcertar ainda mais minha pobre mãe, eu já havia descoberto que médicos só se casam entre si, ou pelo menos não com insignificantes funcionários de repartição pública, e também uma jovem e simpática auxiliar de enfermagem chamada Alice. Alice podia não estar no topo da hierarquia do exército sagrado mas era a fiel escudeira. Passava às voltas com comadres e injeções de analgésico mas também sabia fazer massagem cardíaca e ressuscitamento. E gostou de mim.
Após o casamento, fomos viver em um pequeno e aconchegante apartamento conjugado, para grande alívio de mamãe. Sinto ter o dever de relatar aqui que nos primeiros tempos de nossa união fui razoavelmente feliz e que Alice foi uma excelente esposa, as incoercíveis e sinistras forças que sempre me dominaram porém, assim creio-o eu, fizeram com que gradativamente nos afastássemos, e nos separássemos poucos anos depois. Não tivemos filhos, acho que ela secretamente o evitou, de modo que como aquele grande escritor, também não transmiti a nenhuma criatura humana o legado de nossa miséria. Alice se foi, e eu fiquei sozinho com o conjugado, minhas leituras, a repartição e as indefectíveis nuvens que me haviam adotado desde quando podia me lembrar. Assim foram passando-se os anos, escoando-se sem sequer me chamar a atenção, eu os assistindo com a indiferença cósmica do universo. Aos domingos levava sonhos recheados de creme para o café da tarde com mamãe, cada vez mais ágil e ativa numa proporção surpreendentemente direta a sua idade, e à noite me preparava, após apagar a lâmpada de leitura, para mais uma semana em absolutamente tudo igual às outras com exceção das novas e excitantes doenças que poderiam conduzir à morte e que por mim esperavam para serem descobertas.
A cada seis meses, no entanto, momentos de indescritível deleite me aguardavam, ou melhor, eu os aguardava na mais anômala das ânsias. Era o meu check-up semestral, quando me submetia a todos os exames de investigação médica possíveis e imagináveis permitidos pelo convênio de saúde. A coleta de amostras de sangue era mais ou menos como o carrossel, o eletrocardiograma a roda-gigante, o teste ergométrico a montanha-russa, sentia-me como uma criança no parque de diversões e a mais recente atração chamava-se tomografia computadorizada, uma espécie de trem-fantasma no qual eu tremia da mais pura emoção ao entrar e que encerrou com júbilo minha lista desse semestre. O passo seguinte era a consulta, comumente marcada para dali a uma semana, destinada à entrega dos resultados, de onde eu sempre saía num misto incompreensível de frustração, espanto e alívio após o aperto de mão e as felicitações por meu invejável estado de saúde.
Carcinoma hepatocelular. Pequeno nódulo neoplásico. Tratamento cirúrgico e quimioterápico, fase inicial assintomática, evolução agressiva, taxa de sobrevida de seis meses sem transplante, indefinida com. Ao longo de aproximadamente uma hora, durante a qual permaneci impassível escutando o médico desfiar seu rosário técnico do diagnóstico ao prognóstico sem alterar um décimo de nota no tom de voz, senti-me sobrevoando todas as longínquas e exóticas regiões do planeta que só conhecia através da literatura, senti-me voando leve como uma pluma até quase os limites da estratosfera, senti-me envolto pelo azul extraordinário do céu e nada mais, planando sobre os oceanos infindos acariciado pelas nuvens e depois tocando com as pontas dos dedos os picos congelados das montanhas mais altas do mundo, tudo isso enquanto meus olhos bem abertos fitavam a fisionomia séria e inexpressiva do médico e o ouvia desfiar seu rosário técnico. Percebi que este cessara porque o doutor calou-se de súbito. Concordei com todas as suas recomendações, apanhei as inúmeras folhas de papel com prescrições e requisições para nova bateria de exames e saí após o aperto de mão que dessa vez veio acompanhado apenas de palavras encorajadoras, e carregando no peito um alívio que dessa vez não veio acompanhado de frustração nem espanto. Era apenas um grande, maiúsculo, incomensurável alívio e a sublime sensação de ainda estar flanando.
Enquanto caminhava pela rua rumo ao conjugado e ao mesmo tempo flanava sobre as nuvens, pude enxergar, lá do alto, do céu, a mim mesmo caminhando pela rua, pequenino lá embaixo, e os fulgurantes raios de sol da tarde penetrando suavemente por entre uma multidão de nuvenzinhas cinzentas, quase névoas, que me cercavam e caminhavam comigo e começaram a lentamente desaparecer.
Encontro-me nesse preciso momento a olhar novamente o céu, dessa vez através de uma minúscula janela, uma janela de avião. Termino aqui meu relato contando-lhes que, daquela tarde no consultório médico, um mês já se passou, um mês do qual vivi cada segundo com a mais inaudita intensidade e na mais absoluta felicidade, fazendo coisas que jamais sonhara em fazer, que nem mesmo na leitura conhecera. Pular de pára-quedas fora uma delas, andar de barco outra, lamber picolé sob a chuva mais outra, ainda outra pagar a uma bela mulher por um momento de prazer puramente físico. Não revelei minha condição à mamãe ou a qualquer outra pessoa, solicitei uma licença por prazo indeterminado do trabalho. Não refleti muito sobre a transformação de ânimo que me assaltou desde então mas reflito agora, aqui sentado no avião a mirar o céu e terminando este relato, e percebo que a razão de todos os meus medos e angústias nunca foi propriamente a morte, a imobilidade perpétua de pedra que a mim sempre se apresentara com a cara exangue e balofa da vizinha. Finalmente percebo que o que sempre me afligiu não foi, como à maioria dos homens, a consciência de minha própria e inevitável finitude mas sim a perturbadora inconsciência de quando e como ela se daria. Desde que isso a mim foi revelado, como numa epifania, eu sinto que a venci, que venci indubitavelmente a morte. Segundo os budistas e os estóicos, dois grandes males pesam sobre a existência humana e a impedem de alcançar a verdadeira plenitude: a nostalgia pelo passado e a preocupação com o futuro. No ponto em que agora me encontro, o ocaso de uma vida morna e enfadonha de hipocondríaco, não há grandes recordações tampouco grandes esperanças, só há a satisfação de tê-la enfim vencido. Em poucos minutos o avião pousará no aeroporto de um país africano. Pela minúscula janela, os raios de sol iluminam intensamente o céu de um azul que eu não consigo me recordar de jamais ter visto, um céu completamente sem nuvens. Durante os próximos dois meses me dedicarei ao serviço voluntário em um orfanato.

Um comentário:

  1. Adorei o texto. Se for você quem vai revisar meu texto na Bookmakers, estou em boas mãos :-)

    Marcel T.

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