quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Ostranenie à Hitchcock

Foi deixando uma trilha molhada pelo chão enquanto ia dançando do banheiro à sala. Oh, I can’t control myself! - Debbie Harry a plenos pulmões e no último do volume, e a água continuava a escorrer do seu corpo, agora sobre o tapete enquanto baixava a cabeça para enrolar a toalha sobre os cabelos sem nunca parar de saltitar ao ritmo da música. Adorava cantar e dançar sob o chuveiro, e continuar cantando e dançando nua e molhada pela casa depois do banho. Ainda mais com o calor atordoante desse verão apocalíptico, quarenta graus à sombra, só mesmo com muitas duchas frias ao longo do dia pra suportar. Foi até à cozinha, serviu-se de um copo de suco de laranja (ficou alguns segundos dançando diante da geladeira aberta, aquela fumacinha gélida acariciando-lhe o corpo) e então voltou à sala. Parou diante da janela, ainda cantarolando com a Debbie – call meeeeeee! – e observando, absorta, as atividades em andamento em algumas das mais ou menos cinquenta janelas que a sua visão conseguia alcançar. Entardecia preguiçosamente depois de mais um dia de sol tórrido, algumas poucas luzes acendiam-se tímidas, as suas estavam ainda apagadas deixando a sala numa cálida penumbra. Numa área de serviço uma mulher estendia roupas, num quarto um garotinho jogava videogame sozinho, parece que é só isso o que as crianças querem hoje em dia, vá entender, no seu tempo o bom mesmo era brincar no pátio com outras crianças, televisão e videogame ficavam na reserva pra dias chuvosos; numa sacada um casal tomava chimarrão, sentado naquelas odiosas cadeiras de plástico branco que para ela significavam a total ausência de qualquer compromisso estético mas afinal, que importância isso pode ter? Continuou ali, bebericando seu suco, cantarolando com a Debbie e observando, sempre se recordava daquele filme do Hitchcock quando chegava à janela e se deparava com aquela profusão de outras janelas nas quais a vida acontecia tão distinta e inexorável, gente morria, se mudava, crescia, se casava, cantava e dançava nua e molhada pela casa e ela continuava acontecendo, num fluxo eterno, todo mundo se observando sem realmente se ver. Achava-se enlevada por esses pensamentos, bebericando bucolicamente seu suco de laranja e passeando o olhar pelas janelas alheias quando um reflexo súbito atingiu em cheio seu rosto. Vinha da porta de uma das sacadas laterais de um prédio um pouco à esquerda do seu, um prédio comum de concreto e tijolinhos à vista que nunca chamara-lhe particularmente a atençaõ por qualquer motivo. Tentou focar com maior precisão a porta, a miopia e a distância porém dificultavam-lhe as chance de sucesso. Foi correndo na ponta dos pés até a mesa de jantar, largou o copo e colocou seus óculos. De volta à janela, percebeu que não havia se enganado, o reflexo continuava brilhando bem na sua direção. Apertou os olhos, debruçou-se o quanto pôde à janela, e pareceu-lhe então que um vulto escuro posicionava-se exatamente atrás do ponto de onde o reflexo espocava a pequenos intervalos. Invadida pela surpresa, ainda ficou ali por alguns instantes, de pé, estática e de boca aberta antes de dar um salto e esconder-se atrás da cortina de algodão cru orgânico. O reflexo... só podia ser de um daqueles troços, um telescópio ou um binóculo...e estava direcionado a sua janela... será que mesmo com a penumbra era possível que “ele” enxergasse algo? Será????? E quem, quem seria “ele”???? Fechou a cortina devagar, com a testa franzida, meio mole. Um filé de peixe com salada e uma pilha de livros sobre a cama esperavam-na.
Naquela noite não dormiu muito bem. Teve sonhos inquietantes, excessivamente surreais, num até cavalgava nua em um cavalo branco, igualzinho à Lady Godiva. Por mais de uma vez acordou encharcada de suor. Levantou-se muito cedo, antes do sol dar as caras, tomou mais uma ducha fria e ficou por alguns momentos parada à janela, bebericando seu café com leite. De roupão e em silêncio. As janelas, em sua grande maioria, ainda estavam fechadas, a sacada da noite anterior totalmente quieta e escura. O reflexo... Que saco, nunca se preocupara realmente com isso, com essa estória de privacidade. Esse era um luxo raro pra quem vivia em uma cidade grande. Raro e caro. Além do mais, pra alguém que almejava escrever, a vida através das mais ou menos cinquenta janelas visíveis da sua era um prato cheio. O problema tampouco era sua nudez vigiada. Um corpo nu, seu ou o de qualquer outra pessoa, sempre fora-lhe corriqueiramente natural desde a mais tenra infância, talvez porque em criança tomasse banho ora com os irmãos, ora com o pai, ora com a mãe, ora com a avó, era uma família numerosa onde banho, nudez e necessidades fisiológicas nunca foram sinônimos de tabu. Crescera, então, com essas tendências meio “hippies” na personalidade, certa vez até frequentara com tranquila desenvoltura uma praia de nudismo. Não, definitivamente também não era esse o problema. Vestiu-se e saiu, para trabalhar.
Caminhou, como de costume, a quadra que separava seu prédio do ponto de ônibus. Ao chegar à esquina, parou e olhou para o pulso da mão direita. A noite mal dormida fizera-a adiantar-se terrivelmente, se subisse no próximo ônibus chegaria mais de uma hora antes do expediente da agência começar. Ergueu os olhos para o prédio de concreto e tijolinhos à vista, a poucos passos dela. Bem, por que não? O figurino não era tão glamoroso quanto o da Grace Kelly, e tudo bem, era uma morena bastante esquentada no lugar da loira fria mas isso não era empecilho para investigar uma janela indiscreta... Chegou ao portão no exato momento em que um entregador de gás saía. Um sorrisinho amarelo – ah, obrigada, que bom, tinha mesmo esquecido a chave – entrou e rapidamente dirigiu-se, no pátio, ao corredor lateral direito do prédio, aquele onde deveria se situar a sacada infame. Avistou-a logo, era no primeiro andar, como o seu próprio apartamento. Um providencial conteiner de lixo encontrava-se exatamente abaixo dela, a cereja do bolo de qualquer assaltantezinho mais astuto e com o qual ela intimamente implorava a todos os santos que não fosse confundida, caso alguém a visse escalando a parede com a ajuda de uma ainda mais providencial calha. Em um minuto estava dentro da sacada, da pequena murada envidraçada viu seus sapatos e sua bolsa escondidos a um canto da lixeira. Respirou fundo pra tomar ar e coragem, o coração batendo tão forte e acelerado que mais parecia uma britadeira dentro do peito. Então finalmente virou-se para a porta.


Sentada no ônibus sufocante (daqueles sem ar-condicionado) que sacolejava um pouco, a caminho do trabalho, a cabeça apoiada no vidro da janela, nem ligava para a estranha e prazerosa sensação de dormência que isso sempre provocava-lhe na arcada dentária e que costumava intrigá-la desde criança. Só conseguia pensar em como a britadeira no seu peito parara, seu cérebro parara, tudo a sua volta parara e ficara suspenso por um período no tempo e no espaço que jamais conseguiria medir enquanto seus olhos piscavam ante o reflexo do espelhinho pendurado por um fio de nylon no batente da porta da sacada, que girava suavemente com a brisa... Sentia-se oca e patética, sabia que agora nunca mais teria a chance de descobrir qual havia sido realmente o problema... Também sabia que lá na agência iriam reclamar do seu mau humor, e aquele calor infernal... Não, nunca mais assistiria a filmes do Hitchcock.

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